sexta-feira, 22 de novembro de 2013

estranha

vez ou outra ela aparece no portão da minha casa.
vez ou outra ela faz do portão da minha casa seu lugar seguro.
vez ou outra ela diz uma palavra. vez ou outra ela diz meia palavra.
na verdade, ela não diz.
mas vez ou outra ela pede uma meia pra esquentar os pés.
hoje o sol rachava a sua cara e ela, indiferente, dormia.
hoje a cara dela rachando no sol rachou algo maior em mim.
ela invade assim a vida. sem que nada possa se voltar contra ela.
ela é de vida invadida. vive o íntimo aos olhos de todos nós.
de nós todos que passamos e nunca a vemos.
ela que sequer deve ter uma fotografia na carteira.
ela que certamente não tem uma carteira, documento, endereço.
ela que acumula a vida em meias e sacolas.
ela que provavelmente tem consigo a lembrança da minha vida observada de soslaio.
ela, imóvel, com sua presença indiscreta.
sua presença que, assim como o canto da acaiauã parece prenunciar uma morte.
morte de algo a ser rachado.
hoje, ela rachou algo em mim.
hoje, enfim, entendi quão próxima do portão ela está.
na verdade, hoje entendi que a grade do portão não existe.
ou só existe pra mim.

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